Vejo a chuva cair lá fora e quedo-me. Observar a chuva tem o seu quê de agradável: o som, o cheiro, a paisagem. Para usar todos os cinco sentidos teria que me pôr debaixo dela e agora não me apetece nada.
Vejo uma figura sair da porta mesmo em frente e preparo-me para qualquer coisa menos agradável. Mas em vez disso, num palavreado algo perdido, um quase monólogo, e numa voz que oscila entre a angústia e o gozo:
«Eh pá, este tempo! Chiça, pá! Queria ir à baixa a pé... Mas assim... Eh pá, que chatice!...
...
Sabes, quando vou à baixa, ali nos Anjos há um gajo que está a arrumar os carros, sabes?... Eh pá, o gajo usa um casaco que na lapela esquerda tem uma data de pins, são alguns quinhentos!... Então anda assim, oh, todo torto... É giro, o gajo!...
...
Olha, hoje sonhei com a minha mulher. Íamos num avião e depois, não sei como, dei por falta dela! Perguntei ao homem e ele disse:
- Então, a sua mulher ficou na paragem anterior!
Vê lá tu o que eu fui sonhar!... Eh pá! A minha mulher já tinha descido do avião...
...
Sabes que é que eu te digo... Falando mal e porcamente? A vida é uma merda! Sabes? É mesmo. Às vezes ponho-me ali a ouvir o radio, é só queixas das mulheres com os maridos, com os filhos, depois é as doenças! Eh pá, que desgraças, que desgraças!...
...
Não tenho nada para fazer e não me apetece fazer nada!
...
Eh pá, estou tão chateado! Parece que não, mas quando está sol... Eh pá, um gajo fica melhor! Parece que se fica melhor!
...
Que chatice, pá! Estou tão chateado... Mas isto qualquer dia acaba-se... Qualquer dia isto acaba-se...
...
Olha a prenda do meu senhorio. Todos os anos me dá. Também dava à minha mulher... E eu a eles, claro!... O filho mais novo deles, quando era pequeno, agora está um homem, diz que dizia que estava desejoso de vir o Natal para me ir lá a casa entregar as prendas e escolher o quadro pintado por mim. Todos os anos lhe dava um, tem lá uma colecção, faz favor... E sabia escolher, o gajo! Escolhia os melhores, o gajo sabia...
...
Bem, vou até ao banco ver como está a minha conta. Aproveito para cumprimentar o Esteves, já que passo por ali... Também já está gagá, o Esteves, não está? Eh pá, está mesmo gagá!
...
Até logo, querida!»
Não tive vontade de dizer muito e não disse muito. Eu sei que ele precisa falar.
Dizem que sou boa ouvinte. E sou. Às vezes ouço bem já com o intuito de vir a escrever mas hoje não foi por isso que o ouvi, ainda que tenha vindo a escrever.
Vejo uma figura sair da porta mesmo em frente e preparo-me para qualquer coisa menos agradável. Mas em vez disso, num palavreado algo perdido, um quase monólogo, e numa voz que oscila entre a angústia e o gozo:
«Eh pá, este tempo! Chiça, pá! Queria ir à baixa a pé... Mas assim... Eh pá, que chatice!...
...
Sabes, quando vou à baixa, ali nos Anjos há um gajo que está a arrumar os carros, sabes?... Eh pá, o gajo usa um casaco que na lapela esquerda tem uma data de pins, são alguns quinhentos!... Então anda assim, oh, todo torto... É giro, o gajo!...
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Olha, hoje sonhei com a minha mulher. Íamos num avião e depois, não sei como, dei por falta dela! Perguntei ao homem e ele disse:
- Então, a sua mulher ficou na paragem anterior!
Vê lá tu o que eu fui sonhar!... Eh pá! A minha mulher já tinha descido do avião...
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Sabes que é que eu te digo... Falando mal e porcamente? A vida é uma merda! Sabes? É mesmo. Às vezes ponho-me ali a ouvir o radio, é só queixas das mulheres com os maridos, com os filhos, depois é as doenças! Eh pá, que desgraças, que desgraças!...
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Não tenho nada para fazer e não me apetece fazer nada!
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Eh pá, estou tão chateado! Parece que não, mas quando está sol... Eh pá, um gajo fica melhor! Parece que se fica melhor!
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Que chatice, pá! Estou tão chateado... Mas isto qualquer dia acaba-se... Qualquer dia isto acaba-se...
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Olha a prenda do meu senhorio. Todos os anos me dá. Também dava à minha mulher... E eu a eles, claro!... O filho mais novo deles, quando era pequeno, agora está um homem, diz que dizia que estava desejoso de vir o Natal para me ir lá a casa entregar as prendas e escolher o quadro pintado por mim. Todos os anos lhe dava um, tem lá uma colecção, faz favor... E sabia escolher, o gajo! Escolhia os melhores, o gajo sabia...
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Bem, vou até ao banco ver como está a minha conta. Aproveito para cumprimentar o Esteves, já que passo por ali... Também já está gagá, o Esteves, não está? Eh pá, está mesmo gagá!
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Até logo, querida!»
Não tive vontade de dizer muito e não disse muito. Eu sei que ele precisa falar.
Dizem que sou boa ouvinte. E sou. Às vezes ouço bem já com o intuito de vir a escrever mas hoje não foi por isso que o ouvi, ainda que tenha vindo a escrever.
4 comentários:
Que em 2010 nos possa continuar a encantar com estas deliciosas cenas do quotidiano.
Bom Ano Novo
Do que tenho lido também me parece que deves ser muito boa ouvinte, por saberes mesmo escutar.
E já que não conegui no Natal vou tentar agora antecipar-me: Um Muito Feliz 2010
um beijinho
Gábi
Muito obrigada aos dois. E igualmente para vós, pois claro. ;)
Estas são as delicias de quem vive num bairro popular.
São o quotidiano de uma realidade não muito falada...a solidão.
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