sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Cabeça lá dentro

O automóvel estacou a meio da rua e ouvi uma voz esganiçada vinda dessa direção:
– Ó colega da Gina! Ó colega da Gina!

Achega necessária: o leitor perdoe este egocentrismo, é claro que este caríssimo e singular congénere que comigo colabora nas lides profissionais tem nome... Mas aqui não pode ter, quando não, haverá algo que desmorona, e eu quero o blogue em pé.

O meu colega estava demasiado ocupado, de maneiras que quem respondeu fui eu. Saí e dirigi-me à senhora que já havia saído de dentro do automóvel. Reconheci-a. Conheço de ginjeira, a bem dizer. Era a dona Petra, alguém no fim da vida mas ainda detentora dalguma vivacidade apesar de precisar de duas canadianas para se deslocar, daí o precisar dum favorzinho e estar a chamar o meu colega.

– Ah, vem a senhora... O seu colega está a falar com alguém?
– Sim.
E com um pejo mal disfarçado, pede:
– É que eu tenho ali um saco cheio de laranjas dentro do carro e o seu colega costuma fazer o favor de as levar lá acima... A senhora não se importa... De as tirar do carro, que ele depois leva-as?
– Não, claro que não.
Respondo eu, muito embora sentisse alguma relutância. Note bem: era escuro, estava um frio do caraças, os vidros do carro estavam totalmente fechados, e eu ia ter de abrir a porta de trás duma viatura da qual desconhecia por completo os ocupantes. Agarrei no puxador e abri a porta, corajosamente. Vi-me de cabeça metida dentro dum espaço móvel que no chão traseiro continha um saco cheiinho de laranjas redondas, brilhantes, cheirosas. Fui buscar um nadinha de arrojo mais uma pitada de desplante, coisa pouca, e ouvi-me dizer:
- Boa-tarde, desculpem lá a invasão, a dona Petra pediu que viesse buscar um saco de laranjas...
- Ah, faz favor, faz favor!
Responderam os dois em uníssono. Era um casal tão idoso como a dona Petra. Riam-se, bem dispostos. Antes assim. Oh vida...

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