quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Largueza à vista

Encontrava-me numa casa que desconhecia quase completamente e vislumbrei a paisagem através duma nesga do cortinado florido. O meu desejo imediato foi aproximar-me e ficar ali a mirar sem pressa. Nunca vi a alameda daquela perspetiva e perguntei ao dono da casa se não se importava que fosse espreitar.
– Ó minha senhora, claro que não, faça favor!
Diz ele todo gentil, com um espanto divertido assomando no olhar. E eu fui até à janela, curiosa e satisfeita. Afastei o cortinado com suavidade, para fingir um apaziguamento que não sentia, e olhei lá para fora, para aquela imensidão de cimento ladeado a árvores despidas, nos dias de agora. A atmosfera estava impregnada de escape automóvel, não que estivesse lá fora, mas sei como é, a alameda e eu somos amigas. Cúmplices, até. Ali cheirava a perfume de parede, porém. Um difusor elétrico espalhava um agradável odor. Dei atenção às vistas, então.
Há quem não goste da largueza e da espécie de desamparo que a alameda remete ao transeunte. Mas isso são os transeuntes, que os voyeures gostam. Ou por outra → eu gosto.
A bem da verdade aprecio bastante espaços nus ou sem características crepitantes, que pipocam sensações assim que lhes pousamos o olhar. Fiz saber este gosto ao meu interlocutor do momento, que me respondeu nunca ter reparado nisso. Abre a boca em sinal de surpresa, detém-se algo maravilhado com a minha prosa. Para ele a alameda são meros pedaços de estrada e algumas árvores que florescem na primavera e cujas folhas caducam no outono. Só isso. Ou então uma imagem recortada por uma janela envidraçada e enorme, por onde ele espreita sempre que está aborrecido com o que dá na TV. Desenvolvi um pouco mais a conversa, aproveitando o raro facto de ter um ouvinte interessado. Contei-lhe do prazer especial que tenho em observar paisagens despidas, como que desprovidas de personalidade, com pouca coisa onde sustentar a vista. Assim é melhor, é como estender a mão mas manter-me quieta, existe uma simplicidade natural, a gente percebe rapidamente toda a envolvência, está tudo ali, sem torneados e arabescos. Floreados e afins. Nada. A realidade crua e virgem é a que mais admiro, para lhes achar as subtilezas. Sou artista, gosto de telas em branco, olho a paisagem e construo a história como me aprouver.


Lisboa - Alameda Dom Afonso Henriques, 15 de fevereiro de 2012

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