segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Términus

Terminei de ler o livro 'Não tenho culpa de ter nascido tão sexy' de Eduardo Mendicutti. Admiro a forma como o autor escreve, como inventa e encarna um transexual. É uma história extraordinária. Creio que um transexual é uma figura sempre no extremo, muito dada a extravagâncias de toda a espécie. Gostei. Gostei de tudo no livro e fiquei fã da escrita de Eduardo Mendicutti.

Eu saí do carro sabendo que a felicidade que o meu rosto reflectia era muito convincente, embora de repente tivesse dúvidas sobre se o meu vestuário seria adequado, talvez estivesse demasiado sóbria e discreta para uma ocasião como aquela, mas forcei-me a ter confiança no facto de que a pupila de um anjo estaria pelo menos tão trespassada como a de um embrião de santa, e que portanto apreciariam não só a minha beleza, mas também a minha elegância interior. A manhã tinha essa luminosidade um pouco ebúrnea que sempre me favoreceu muito. (...)

Subjugou-me. Os meus olhos puseram-se em alvo, coloquei as minhas duas mãos em cima do peito, reparei que me percorriam os lábios as cócegas de uma serena mas muito intensa felicidade, e vi-me suspensa nas alturas com a ajuda do meu anjo. A luminosidade da manhã tinha passado do ebúneo ao ouro pálido e ligeiro, que é um tom que também me favorece enormemente. Senti a falta da minha cabeleira, que sempre teve uma tendência natural para se ondular e mexer-se mal soprasse uma brisa - e que teria flutuado sobre os meus ombros com uma tranquila ondulação de muito efeito -, mas, em contrapartida, estava convencida de que o meu pescoço, à vista, apresentaria uma esbeltez e uma perfeição, polidas pela entrega, invejáveis. (...)

O tempo passa como um cavalo de fogo e vai queimando muitas coisas na nossa vida, mas aquilo que nos conseguiu abrir o coração ao meio volta sempre. O primeiro olhar do meu pai quando se deu conta de por onde eu me queria pôr a correr e de onde me viriam os sofrimentos; a primeira vez que pus os pés na rua, vestida como se fosse fazer parte dos coros da representante espanhola no Festival da Eurovisão, e não pensei que de manhã teria de vestir outra vez roupa de rapaz e não senti que estivesse mascarada, e quando me dei conta disso emocionei-me tanto e desatei a chorar com tanta vontade e tanto gosto que a Débora e a Gina não sabiam se deviam ir a correr à farmácia comprar calmantes e acender uma vela à Virgem da Caridade para lhe agradecer o bom bocado que eu estava a passar; aquele dia em que apoiei a cabeça na saia da minha mãe e ela me acariciou como se o fizesse por tudo o que não me tinha acariciado durante os anos que tinham passado sem nos vermos; o beijo que me deu o Juan, o primeiro homem que desfrutou de mim e do qual desfrutei depois da operação, quando lhe disse que sim, que também eu tinha terminado, e que me tinha levado à glória... E aquela menina vestida de primeira comunhão, que estava ao meu lado enquanto eu saía aos poucos da anestesia, nove horas e meia depois de me meterem na sala de operações.

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