segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A dívida, a 'essência', a parafina e umas quantas pessoas

Zulmira tinha uma nota na mão, que eu bem vi. Gorda, uma nota gorda. Encontrava-se um tanto ou quanto apreensiva, não queria dar a ver ao homem engravatado que tem conta corrente no meu espaço comercial. Vinha abater qualquer coisa na continha, que eu bem sei.
Há pessoas com quem posso ser afoita e mostrar-me expedita:
– Então, diga coisas, estou a ver que tem uma nota na mão... É para mim?
Zulmira manda o sujeito reservado para um plano diferente do nosso e desbobina que tem duas notas daquelas com uma alegria que só ela. Ó glória terrestre!, penso eu, duas notas.

(Ainda há mais. Ler abaixo por favor.)

Zulmira quer essência de terebintina. Aguarrás, pergunto eu. Não, essência de terbentina, aguarrás pura, responde ela. Hum, não tenho, digo.

(A essência de terebintina versus aguarrás é tema que dá pano para mangas mas eu não me apetece explanar porque é enfadonho por demais.)

E parafina, volta Zulmira aos pedidos. Também não, devolvo eu. Assim, em barra, insiste e faz um gesto com a mão indicando o tamanho da peça que quer. Não tenho, dona Zulmira..., torno eu.
Zulmira foi ficando, já completamente esquecida do homem sisudo atrás dela.
Fiz-lhe as contas. Zulmira pediu que lhe desse a conhecer o saldo devedor atual. Disparei três dígitos e ela percebeu imediatamente.
Zulmira foi ficando. Os clientes entravam um a seguir ao outro. É o que se quer para que todos sejam atendidos capazmente. Havia no entanto algo diferente no meu espaço comercial: cada um era bafejado com a pergunta insistente de Zulmira: 'onde é que eu hei-de arranjar parafina assim em barra?' e vá de fazer o gesto e ainda explicar tim-tim por tim-tim o que ia fazer com a 'essência' e a parafina.
O homem engravatado, reservado e sisudo estava em completo abandono, tanto que a pergunta não chegou para ele, Zulmira havia-o esquecido, apagou-se-lhe da memória. Mas não da minha, eu sabia-o ali, sabia o que o mantinha ali.
Nenhum dos meus clientes sabia

(ou queria)

responder a Zulmira. Todos se espantavam e faziam caretas desdenhosas que tentavam dissimular por entre negações.
Zulmira foi ficando e assistiu ao desafogar do meu trabalho. Torna ao assunto primário, insistentemente. Desembaraço-me dessa insistência e aproveito uma brecha para anunciar ao pobre que está à espera

(sei eu bem de quê)

anunciando-lhe que não espere mais, pois será debalde. Ele aproveita avidamente, desejoso de se ver livre de tamanho espetáculo, aliviado da tensão imensa que é observar aquela ave rara. Sorri, até. É um sorriso de complacente e resignado. Então adeus e bom fim de semana, diz ele.
Zulmira ainda fica. Ensina-me uma vez mais como fazer velas com 'essência' e parafina assim em barra...

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