O meu primeiro patrão era muito estranho.
Quando me empreguei pela primeira vez fi-lo numa fábrica de costura numa localidade não muito longe de onde morava. Tinha quinze anos e fui ganhar uma miséria. Naquele tempo havia quem aprendesse de borla, de maneiras que eu ganhar alguma coisa, por pouco que fosse, não era nada mau.
O meu primeiro patrão era muito estranho. Mesmo.
A sala onde estavam dispostas as máquinas de costura era imensa, havia também uma mesa enormíssima onde se fazia o corte e as únicas pessoas que andavam em pé eram as senhoras do corte e as chefes de linha que davam apoio às costureiras ou simplesmente as mandavam calar e trabalhar. O barulho era ensurdecedor, essa é uma das recordações mais presentes que tenho da altura.
Eu trabalhava sentada num cantinho a cortar as pontas das costuras que vinham das minhas colegas costureiras. Para esse serviço tinha que ter uma boa tesoura, então, um dia ou dois depois do dia primeiro, a minha mãe deu-me dinheiro para comprar uma tesoura que ainda hoje conservo. É muito boa, já foi tantas vezes afiada que está bem menor no comprimento. Também abria as ditas costuras a ferro. Um dia houve uma empreitada tão grande de fardas azuis escuras (tenho para mim que era para a Polícia mas não estou certa disso) que várias colegas trouxeram os ferros de casa para as aprendizas darem despacho ao trabalho.
O meu primeiro patrão era mesmo muito estranho. A sério que sim.
Colocava-se na escadaria (a fábrica funcionava numa espécie de cave) a observar soturnamente as suas subalternas. Tinha um ar de mau que só visto. Ou então era eu que debaixo da minha timidez e inexperiência o via assim: ruim e inacessível. Nunca o víamos de perto, nem no dia de pagamento, quem nos estendia o envelope com as notas era a chefe mais chefe que as outras chefes. Um dia, as notas começaram a escassear. A mim ficaram-me a dever o último ordenado, alegando que havia estragado o ferro de engomar duma das colegas costureiras. Efetivamente o ferro estragou-se mas não por minha culpa, era um ferro a vapor doméstico, inadequado para trabalhar horas a fio. E eu é que o paguei. E a minha colega deve ter ficado sem um ferro de engomar, provavelmente.
O meu primeiro patrão era deficiente.
Debaixo da postura austera havia um homem sofredor, era deficiente. Segundo me lembro, a sua deficiência era sobretudo nos braços mas desconheço se era de nascença ou por acidente. Nos largos minutos em que se mantinha no cimo das escadas observando-nos, dava um balanço esquisito ao corpo e mandava os braços para trás das costas. Dois pêndulos mortos eram balanceados duas ou três vezes e tumba!, braços atrás das costas, mãos sobrepostas e agarradas uma à outra para os pêndulos sem vida não escorregarem e ficarem inertes ao longo do corpo.
O meu primeiro patrão era muito estranho, eu bem que aviso desde o início do texto...
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