quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Vinho

Depois de ler as passagens do álbum, foi para mim um choque descobrir que ela frequentava o La Mauvaise Réputation regularmente. Ia lá uma vez por semana ou mais, em segredo e depois de escurecer, odiando cada segundo e desprezando-se a si mesma pela sua dependência. Não ia lá beber. Não. Para quê, quando tinha a cave cheia de dúzias de garrafas de sidra ou prunelle ou até calva da sua Bretanha nativa. Embebedar-se, dissera-nos uma vez num raro momento de confidências, é um pecado contra o fruto, a árvore, o próprio vinho. Era um ultraje, um abuso, tal como a violação é um abuso do acto de amor. Na altura corara e virara a cara com brusquidão: «Reine. Claude, passa-me o azeite e algum manjericão depressa!», mas eu não me esqueci. O vinho, destilado e nutrido, desde o rebento até ao fruto, e depois passando por todos os processos que o transformam no que é, merece mais do que ser engolido à pressa por idiotas que não têm nada na cabeça. Merece reverência, alegria, delicadeza.
Oh, a mãe compreendia o vinho. Compreendia o processo de adoçamento, de fermentação, a efervescência e maturação da vida dentro da garrafa, o escurecimento, as transformações lentas, o nascimento de uma nova colheita num ramalhete de aromas, como um ramo de flores de papel de um mágico.
Se ela tivesse tido tempo e paciência para nós. Um filho não é uma árvore de fruto. Só percebeu isso quando já era tarde de mais. Não existem receitas para ajudar um filho a chegar segura e docemente à idade adulta. Ela devia saber isso.

Joanne Harris, 'Cinco quartos de laranja'

É assim que vejo o vinho, com o paladar. É assim que reforço a ideia de que os bêbados não gostam realmente de vinho.

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