Escrever o quê?
Que o sô Ventura me paga um cafezinho na vez sim, na vez não pago-lhe eu, e que eu acho que este tipo de partilha se torna desnecessária uma vez que acabamos por pagar o nosso café as mesmas vezes?
Escrever o quê?
Que a dona Luísa já me disse que logo á tarde, se estiver bem-disposta, me vem chamar para um cafezinho e um bolinho, ou aquilo que eu quiser comer, que a ela tanto se lhe dá, que paga com o todo o gosto e amizade?
Escrever o quê?
Dum senhor que não encontra o creme de barbear assim-assim em lado nenhum e eu aqui tenho, que já não se encontram locais destes por aí, que aqui, neste local, apesar de exíguo, é um supermercado porque se vende de tudo?
Escrever o quê?
Da chuva que me encanta mas que, por mais que faça e diga, ninguém acredita nesse meu encantamento?
Escrever o quê?
Da exclamação rente ao terror que uma senhora proferiu quando verificou que ia ter que pagar com uma nota altíssima uma conta irrizória e que
parece-me que havendo terror no acto teria de partir de mim?
Escrever o quê?
Amanhã é sexta-feira santa mas eu não lhe prevejo qualquer santidade?
Escrever o quê?
Que o Clóvis diz que a preta do escritório tal tem uma ganda pancada nos cornos mas quem tem uma pancada do caraças é ele pelo modo dúbio como conduz a sua vida: despreocupadamente atento às pessoas, e, mesmo assim, altamente egoísta?
Escrever o quê?
Da completa confusão em que está a minha cabeça?
Da angústia que todos os dias expulso daqui para fora?
Da solidão em que me encontro porque não tenho problemas iguais aos da outra gente, porque não padeço duma doença da qual possa falar abertamente, porque tenho de esconder lágrimas e sofrimento?
Que engulo os sentires e com eles engordo a minha dor?
Que percorro quilómetros Lisboa afora almejando tão somente fugir de mim mesma?
Da astenia que não me larga e me impede de fazer coisinhas tão simples como levantar a mesa do jantar e varrer o chão?
Da culpa tão imobilizadora e devastadora que mata os meus sorrisos, as minha
gargalhadas, os meus prazeres, à nascença? Que passo a vida a fingir e
que isso me atormenta de sobremaneira?
Do meu desinteresse, porventura desdém, no que concerne à exposição que faço de mim mesma num blogue tão caprichoso quanto desnorteado?
Escrever o quê?
Que a vida é assim? Mas a vida é mesmo assim?!
Escrever o quê?
Voltar à carga, atentar nos outros, escrever das pessoas, dos seus afazeres, das suas características, expressões faciais e outras, da sua complexidade e diversidade?
Escrever o quê?
Que escrevo dos outros a ver se me esqueço de mim, já que não suporto ouvir
o que ecoa dentro da minha cabeça constantemente?
Escrever o quê? Um dia invento coisas e pronto!
Lisboa, 21 de Abril de 2011