Quando a conheci, a vizinha Gracinda era uma jovem mãe de um bebé chamado João Paulo. O Paulinho, nome carinhoso com que era tratado, era rechonchudo e moreno como a mãe.
Naquela altura passava em Portugal, pela primeira vez, uma telenovel vinda do Brasil, a famosa "Gabriela Cravo e Canela". A minha mãe comentava que a vizinha Gracinda era muito parecida com a "Gabriela" e de facto, era verdade. Era muito bonita, alta, morena, elegante e tinha os cabelos escuros, ondulados e compridos, tal como a "Gabriela".
A memória mais antiga que tenho da vizinha Gracinda é vê-la lavar a roupa do bebé num tanque que ela tinha no quintal. Também me lembro de a ver tirar as peles e os caroços das uvas para o Paulinho comer. Hoje sei que aquela atitude revelava cuidado e que o principal objectivo da vizinha Gracinda era evitar que o bebé se engasgasse. Mas eu, que naquela altura era ainda uma criança, ficava admirada de a ver fazer aquilo. Que estranho alguém descascar uvas... porque raio é que o bebé não comeria as uvas como eu?!
A vizinha Gracinda morava por cima de quem morava por cima de mim. Para se chegar à casa dela, entrava-se por uma porta e subia-se uma escadaria de uns vinte degraus, a casa propriamente dita era lá em cima.
Comecei a gostar verdadeiramente da vizinha Gracinda. Era muito simpática e às vezes convidava-me para ir lá a casa brincar com o Paulinho. E ele tinha tantos brinquedos, tão giros e tão coloridos...
No quarto dela, em cima da cómoda, havia um objecto que me fascinava. Era um frasco de perfume que tinha um tubo com uma bomba na extremidade, tudo forrado com um tecido na côr grenat. Quando pressionada, essa bomba libertava o perfume em borrifos. Não me lembro com exactidão, mas creio que ela me explicou o que era aquilo e como funcionava. Era mesmo próprio dela ter paciência para explicar e compreender o meu fascínio infantil por determinados objectos. Eu, por minha vez, sabia que não a aborrecia, ela achava normais as minhas infantilidades, eu podia sempre contar com a sua compreensão.
Foi ela que me ensinou que os iogurtes naturais saberiam melhor se esperássemos que o açúcar derretesse e só depois comêssemos. Ainda hoje, quando como iogurtes naturais, deixo derreter o açúcar e lembro-me sempre da vizinha Gracinda.
Foi na casa dela que vi, pela primeira vez na minha vida, um gira-discos pelo qual também manifestei fascínio. E ela punha-o a tocar só por minha causa.
Os sogros da vizinha Gracinda tinham uma quinta muito perto das nossas casas. Sou péssima a calcular áreas, mas sei que na quinta havia espaço suficiente para haver hortas e pomares, onde tinham semeados e convenientemente tratados, vários tipos de legumes e várias espécies de árvores de fruto. Havia ainda espaço para animais - vacas, porcos, galinhas e coelhos. Os sogros da vizinha Gracinda viviam do que a quinta produzia e rendia e ela própria era daí que tirava o seu sustento.
Eu cresci e cheguei à adolescência. No tempo em que já não andava na escola e ainda era demasiado nova para trabalhar, a vizinha Gracinda foi muito minha amiga.
Com o crescimento a minha mentalidade mudou, mas a vizinha Gracinda com a sua amabilidade e a sua simpatia naturais adaptou-se a mim e à minha faixa etária. Continuava a ter sempre uma palavra agradável quando conversávamos e adquiriu um jeito especial para entender nas entrelinhas o que eu não dizia.
Sabia como eu me sentia só porque passava o dia inteiro sózinha em casa e convidava-me para ir com ela a vários sítios. Um desses sítios era uma fábrica onde se faziam bolachas Cream Cracker. A vizinha Gracinda ia lá para comprar os restos de massa que sobravam do fabrico das famosas bolachas. Essa massa servia para alimentar os porcos que ela tinha na quinta. E eu, enquanto ela negociava, passava o tempo a observar a fábrica por dentro e achava montes de piada às grandes máquinas nas quais via as bolachas, ainda cruas e pequeninas, a viajar nos tapetes rolantes que as levariam ao forno enorme. Havia farinha e bocadinhos de bolacha espalhados por todo o chão da fábrica. E ainda hoje me lembro que haia lá um rapaz que percorria a fábrica executando as suas tarefas e quando passava por mim fazia-me "olhinhos"... enfim!.. Coisas de adolescente!... É claro que a vizinha Gracinda se apercebeu muito bem. Mas também aí ela actuava com naturalidade, sabendo e aceitando que na idade em que eu estava estas coisas são perfeitamente normais.
Passeei por mais sítios com a vizinha Gracinda. Ela levou-me ao Carnaval de Loures, à praia do Lizandro, ao Centro Comercial Oceano em Odivelas e também ia muitas vezes com o Paulinho para a quinta andar de bicicleta e o Tobi atrás de nós.
A história da vizinha Gracinda não termina bem. O Paulinho morreu de acidente de viação há cerca de uma dezena de anos atrás. Nunca mais falei com ela pelas circunstâncias da vida, elça mudou de casa e eu também, mas imagino que ela não seja mesma. No entanto, eu quis escrever acerca da vizinha Gracinda porque para mim ela foi alguém muito importante. Posso, inclusivé, escrever que foi valiosa sem estar a exagerar nada. A vizinha Gracinda foi e é alguém que eu não quero esquecer nunca. E ao escrever acerca dela, estou de certo a perpetuar a sua lembrança na minha memória. Tanto é