Às vezes a rica filha diz-me:
- Mãe, tu fazes umas caras tão giras!...
E eu acho que hoje fiz uma cara que ela gostaria de ter visto. Cheguei ao hipermercado pela manhã para abastecer a minha despensa tãããão pobre e necessitada de alimentos e assim que saio do carro vejo um segurança vir na minha direcção montado numa daqueles coisas giríssimas - uma plataforma em cima de duas rodas, que mais parecem ser de tractor mas em tamanho minhon, com um eixo na vertical onde depois se insere a espécie de volante. "Aquilo" veio ter comigo e eu comecei a fazer a tal cara, suponho. Era - devia ser - uma cara género: "Ó pá!... Que é que eu fiz?..." e fiquei à espera de qualquer coisa mas sem fazer a mais pequena ideia do que seria. Estava tudo bem, o carro no sítio e tal... luzes apagadas... que quereria ele?
- A senhora não pode entrar assim... neste sentido - disse ele admoestando-me mas com simpatia e muita calma.
"Ufa! OK, OK... ele não vai ralhar!..." - respirei de alívio.
- Não?! - perguntei fingindo espanto - Ah...
- Não. Esta via tem duas faixas e um só sentido. Este parque de estacionamento funciona como se fosse uma rotunda. Se a senhora circular no sentido em que veio e dali vierem dois carros...
- Claro... choco com um deles - disse eu raciocinando rapidamente, revelando assim alguma lógica. Um estratagema que uso com frequência, dando a mão à palmatória é mais fácil gerir o aborrecimento inevitável de quem "leva nas orelhas". De seguida ele deu-me as indicações para eu chegar até ali onde costumo estacionar sem transgredir as regras de trânsito.
Eu já sabia que não se pode circular naquele sentido. Só que eu vou sempre por ali, o meu trajecto é sempre aquele, estaciono quase sempre no mesmo lugar e o hábito já tem tantos anos que me esqueço - mesmo!!! - que não posso ir por ali.
Pedi desculpa, agradeci e abandonei o local. Enquanto andava reparei nas setas que estão desenhadas no chão. De facto, estão lá indicando o sentido oposto àquele em que costumo circular.
Fiz as minhas comprinhas e dirigi-me ao carro. Enquanto punha as compras dentro do porta-bagagens lembrei-me deste pequeno episódio. Observei o sítio por onde costumo sair e lembrei-me que provavelmente também iria sair em sentido contrário. Olhei em redor para ver se via o segurança para lhe perguntar, não o vi. Depois olhei para o pavimento para ver se naquela via, paralela àquela em que eu entrara, teria setas desenhadas. Não tinha. Olhei outra vez em redor para ver se o via para lhe perguntar, não o vi. Entrei para dentro do carro, pu-lo a trabalhar, pus o cinto, olhei pelo espelho retrovisor pensando que era melhor sair para trás e apanhar o sentido correcto. Olhei outra vez em redor a ver se o via para lhe perguntar, não o vi. Olhei pelo espelho retrovisor a ver se o via para lhe perguntar, não o vi. Quase - quase! - inconscientemente engatei a mudança e arranquei... para a frente, para onde provavelmente seria sentido oposto. Circulei devagar para ver se via setas no chão que me tivessem passado despercebidas e também para ver se o via. Não havia setas nem o vi. Vi-o cá fora e pela maneira como olhou para mim eu percebi que fiz asneira. Tinha uma expressão género "se ela vem dali é porque vem em sentido contrário". Imaginei logo que o homem ia tirar a matrícula para fazer queixa à Polícia, imaginei que devia fazer os piscas todos e as perpendiculares todas muito bem-feitinhas como quando era maçarica para dar um ar de senhora pacata e idónea, imaginei que era melhor não acelerar muito para não parecer que me sentia culpada de alguma coisa e para não ter por cima da asneira de andar em sentido contrário o excesso de velocidade. Também aqui eu devo ter feito caras muito giras, imagino!
Na verdade o que me apetecia fazer era pisar na porra do acelerador, não fazer porra de piscas nenhuns, nem porra de perpendiculares nenhumas e fugir dali para fora tão depressa quanto possível!
Como é que esta história vai terminar? Espero sinceramente que já tenha terminado, logo se vê... Tão cedo não me vou esquecer de circular no parque de estacionamento do hipermercado no sentido em que devo circular.