Terminei de ler o livro 'Frases curtas,minha querida' de Pierrette Fleutiaux.
Devo dizer que adorei o livro, ajudou-me a compreender uma série de coisas relacionadas com a velhice e abriu-me os olhos para alguns aspetos do mundo geriátrico.
É um livro triste, indubitavelmente, a morte ronda em cada capítulo, às vezes até parecia assistir à minha leitura, espreitando as minhas expressões e tomando notas. Creio que o li na altura certa, se o tivesse feito há uma dúzia de anos atrás não teria retirado tanto proveito da leitura. Recomendei esta leitura à rica filha, vincando a ideia de que o deve ler só quando eu for muito velhinha...
As coisas que eu escrevo.
Não ias ficar contente. Estou a trair-te, a contar os teus segredos. Agora posso dizer o que quero. Os mortos já não podem dizer de sua justiça.
Não é verdade, os mortos têm forçosamente a última palavra, nunca largam a presa, estão em nós de agora em diante. Mãe, é preciso que eu escreva, isto é a minha vida, foi assim que me fizeste.E és tu quem agora está aqui, e não posso fazer nada em contrário.
Eu também não estou contente. Gostava de me expandir para outro lado, estou farta de nós, mas não há outro lado enquanto aqui estás.
Tens-me presa, mãe, e a culpa é tua.
Não vou, vou pouco, ao cemitério. Não irias censurar-me, julgo, «esses fingimentos», dizias. Tinhas especificado «Não quero flores», só zelar pela manutenção do granito.
Querias muito mais de mim, querias que fosse contigo até ao teu túmulo, que ficasse lá dentro, com os teus antepassados, rodeados pelos mais antigos da tua aldeia, todos parentes, ramos e folhas das mesmas árvores do mesmo solo desde o início da nossa era e ainda muito antes.
Digo isto, mas será verdade?
Não sei o que se passa no íntimo dos seres no momento em que os sinais do corpo acendem e apagam sobre a palavra «fim».
Puxaste tão fortemente por mim durante este período final, puxada para ti, seduzida por todas as tuas últimas forças, a ponto de me perder à força de resistir, de te seguir, de resistir de novo... Agora ando em volta dessas trevas para onde não soube acompanhar-te, ando às voltas com as minhas frases.
Vai escrevê-las para outro lado, às tuas frases, vai dançar as tuas danças para outro sítio, que não em cima do meu túmulo, é isto que tu dizes, mãe, com a tua cara de trevas, ultrajada?
Talvez não.
«Frases curtinhas, minha querida... Não te esqueças, se quiseres que te compreendam.»
Não pensava nas pessoas, pensava naquilo que tinha de escrever, é tudo. Tu, pensavas em mim.
Quando parti para uma ilha do outro lado do mundo (uma longa ausência), não sabia como anunciar-lho, receava a reacção dela. Mas os olhos brilharam-lhe «vai, minha querida», pegou no atlas, na enciclopédia, aprendeu a usar o fax.
A voz tão terna, o seu entusiasmo, «minha querida»...
A minha mãe: duas vozes, dois rostos. Vejo-os e ouço-os alternadamente. Com ela, nunca soube bem de que lado tocava a música, mas ela soube fazer-me dançar, como ninguém mais me fez dançar.
Está a olhar por cima do meu ombro, ofegando ligeiramente, como quando eu era criança.
Não quero flores, frases curtas, minha querida.
(páginas 216, 217)